quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Capítulo


Os dois tinham adiado aquele dia por semanas. Talvez por não quererem se ver depois de tudo que tinha acontecido, talvez por ainda haver alguma esperança de que tudo aquilo não fosse ser necessário. Dividir uma estante inteira de livros ia ser uma tarefa árdua, ambos sabiam. Nunca imaginaram, ao longo de todos os anos que levaram para construir aquele pequeno acervo juntos, que teriam de passar por uma partilha. Eram um casal diferente, em diversos aspectos: toda a parte litigiosa que geralmente envolve móveis, carros, apartamentos tinha sido rapidamente resolvida por uma espécie de acordo não verbal. Suas vidas eram bem independentes nesse sentido e não houve problema na hora de decidir quem levaria a poltrona da sala ou o telefone antigo que ficava na bancada da cozinha. A única área daquele apartamento onde seus territórios realmente se cruzavam era a imponente estante de livros. 

Não havia como ignorar a importância de cada página ali. Cada história era um pedaço da mistura em que tinham se transformado, cada personagem era um amigo em comum que os havia feito companhia em noites difíceis, em viagens a outros países, em dias de solidão e de dúvida. Todos os livros do acervo tinham sido lidos pelos dois, sem exceção, em cumprimento a um pacto que fizeram assim que passaram a morar juntos. Não é estranho então que existissem dois volumes de uma mesma obra em alguns casos: às vezes, a ansiedade era tanta que era impossível esperar o outro terminar a leitura. Chegavam a trocar mensagens de texto com comentários sobre o que tinha acontecido no último capítulo ou ligavam um para o outro e tinham discussões calorosas no meio do trabalho por causa da reviravolta na vida do personagem principal. Muitas vezes, deitados lado a lado na cama com os livros no colo, interromperam a leitura um do outro para dividir uma citação impressionante ou choraram em silêncio, só com lágrimas, quando as ficções ficavam muito parecidas com a realidade. 

A campainha tocou e ela foi atender, meio inibida pela peculiaridade da situação. Ele entrou segurando algumas caixas ainda desmontadas na mão, inclinou-se e beijou-a no rosto com a mesma delicadeza que lhe era de costume. Foi andando até as prateleiras com a intimidade de alguém que viveu naquele espaço por mais de 10 anos e passou a mão nas lombadas de todos os livros da última fileira, onde ela nem podia alcançar.

–Isso não vai ser tão difícil, vai? – ele perguntou.
–Eu acho que não... – ela respondeu com pouca convicção – Pensei em um esquema para facilitar as coisas: a gente começa dividindo os volumes repetidos, que não vão gerar dúvida. Depois a gente separa os livros acadêmicos, passa para as coleções, para os livros de arte e de poesia, para os romances e então acaba.

Ele riu entre os dentes. Ela não perguntou, mas sabia que era uma crítica a sua mania de organizar e criar métodos para tudo. Sem dizer nada, começou a garimpar os títulos repetidos enquanto ele montava as caixas que tinha trazido. Em questão de minutos, já tinham enchido duas caixas e, mesmo assim, a diferença na prateleira era quase invisível. Ele pegou os livros de economia e direito e ela separou os volumes de arte e arquitetura, mesmo percebendo que o olho dele escorregava constantemente para o sofá, onde ela empilhava uma coleção de surrealistas franceses. Eram os preferidos dele e ela sabia.

Tinham gostos muito diferentes quando o assunto era poesia, mas aprenderam a gostar de muitas coisas por causa da convivência, o que tornou tudo mais difícil. Sentaram-se em lados opostos e decidiram espalhar os livros pelo chão para facilitar o processo. 

–Posso ficar com o Quintana e com o Drummond? – ele perguntou, meio inibido.
–Hum, pode. Mas então vou pegar Adélia Prado e Walt Whitman.
–Dickinson, Gregório de Matos, Borges...
–Borges não! – ela falou um pouco acima do tom – Eu queria muito ficar com o Borges.
–Tudo bem – os olhos se cruzaram por alguns instantes. Dentro das cabeças o mesmo filme passava: a viagem para Argentina, que tinha feito os dois gastarem fortunas com o excesso de bagagem e tinha dado início à paixão dos dois pela literatura da América Latina.

Terminaram as poesias e passaram para a ficção. Era o cerne da coleção. Reuniram todos os volumes no centro da estante e ficaram encarando o muro maciço durante alguns segundos. 

–Você tem alguma coisa pra beber aí? – ele perguntou.
–Não tenho nada... Vamos comer algo.

Os dois foram para a cozinha e prepararam em silêncio uma refeição pequena com o que tinha na geladeira. Se revezaram no fogão e depois lavaram a louça. Sentaram no sofá em meio aos livros dela, com as canecas cheias de café e o coração apertado pelo tempo que se esvaía, pelo orgulho atravessado na garganta. Ele começou: 

–Pensei em ficar com os beats, por motivos óbvios. – e então riu. Tinha a adolescência embrulhada naqueles livros, por mais que isso não condissesse com a sua aparência – Mas lembrei do quanto você gostou quando leu Kerouac e acho que vou deixar eles com você. Até porque eu compraria tudo de novo sem o menor esforço...
–Tive a mesma ideia em relação aos meus “romances de mulherzinha do século XIX”. Consigo reconstituir com precisão de detalhes o final de semana em que você leu North and South, sentado aqui mesmo nessa poltrona. Melhor ainda! Lembro de você falando que tinha gostado muito por causa do “valor documental sobre a revolução industrial na Inglaterra”! – ela respondeu, imitando a voz dele.

Os dois riram como já não faziam há meses. As lembranças, que ambos estavam tentando evitar desde o momento em que a campainha foi tocada, começaram a se acumular na superfície como as penas de um travesseiro que estoura no ar. Leves e lentas, muito agradáveis de se ver no início, mas trabalhosas e incômodas quando já formam um tapete grosso no chão. 

–Isso não tem sentido nenhum. – ela disse com a voz baixa e pesada, quebrando o silêncio sepulcral que havia se instalado depois da audível crise de risos.
–Eu não quero levar essas caixas embora. A gente não precisa fazer isso.
–É, eu também acho. A gente pode deixar os livros aqui e você pode vir sempre que precisar pegar algum. Ou eu posso levar pra você, sei lá.

Eles se conheciam há tempo demais para não entenderem o que havia realmente por trás daquelas palavras. Ele passou a mão no cabelo dela e ela arranhou de leve a sua bochecha. Beijaram-se por longos minutos e adormeceram no sofá, em cima dos livros. 

Não havia berço mais coerente. Estavam juntos outra vez.


domingo, 9 de setembro de 2012

Ar


      O rubor já tinha começado a desaparecer das bochechas dela e o coração já tinha adotado uma batida mais resignada, quando a porta do elevador se abriu e ele saiu de cabeça baixa, carregado de sacolas. A falta de resposta às várias batidas que ela havia dado na porta dele tinha causado uma mistura de emoções que ela não conseguia processar: metade dela sentia alívio, a outra também; depois, uma outra metade apareceu, absolutamente decepcionada e esperando dar um destino a todas aquelas palavras ensaiadas; no final das contas, o contentamento já tinha se instalado e ela caminhava até o início do corredor refazendo os planos que já estavam tão bem arrematados.

      Aquela aparição inesperada tinha lhe tirado o rumo (mais uma vez), como quando um ímã se aproxima da bússola. A cabeça permaneceu baixa, mas ela sabia que já tinha sido notada. Teve a confirmação quando ele olhou para cima com uma expressão “feita”, uma máscara de indiferença muito mal ajustada, que não convencia, mas machucava de qualquer forma. Os olhos eram duros de julgamento e a boca quase gritava um insulto só através da maneira como estava fechada. As sobrancelhas arqueadas, severas, não combinavam com o tom de pele claro e rosado nas bochechas, agora cobertas com uma barba mal feita.

      As primeiras palavras trocadas não valem a pena serem transcritas. Nada além de um roteiro de filme barato, cheio de “porquês” e “você não tinha o direito”. Mas, quando as palavras ensaiadas acabaram, algo realmente sincero saiu da boca dela:

      -Olha, eu não sei por que essa discussão começou. Eu vim aqui disposta a aceitar qualquer culpa, a engolir o orgulho e a pedir desculpas. Só desculpas. Você não foi o motivo de eu ter ido embora, você não tinha nada a ver com isso, pra falar a verdade. E Deus sabe como você me fez falta esse tempo todo! (silêncio constrangedor pós-revelação que ela considerava muito íntima) Não quero que você diga nada, eu só precisava vir aqui e mostrar um pouco de humilhação e arrependimento (que são as duas coisas que eu mais odeio demonstrar no mundo, e você sabe disso). Eu precisava disso para continuar.

      Os dois ficaram se olhando por um bom tempo e então ele começou a andar em sua direção. Ela ficou se perguntando o que aquilo queria dizer. As sacolas balançavam em sua mão e pareciam pesadas demais. Ele ia abraçá-la? Ele ia se aproximar só para insultá-la mais de perto? Ou ele queria que o NÃO fosse mais audível? Ao contrário das expectativas, ele se desviou pouco antes de chegar à frente dela e passou direto. De costas, ela pôde ouvi-lo pousando algumas sacolas no chão, pegando as chaves do bolso e abrindo a porta com um pequeno estardalhaço.

      Uma das poucas coisas que tinha aprendido em todo aquele tempo de relacionamento era a interpretar pequenos gestos, e aquela postura não soava nada bem. Ela tinha falhado, mais uma vez. Já estava preparada para uma entrada rápida e uma batida violenta de porta, mas tudo que sentiu foi um vento leve soprando a saia. Vinha da janela da sala, oposta à porta principal. Ela se manteve de costas com os olhos fechados, esperando o estrondo da porta e uma lufada de vento ainda mais forte, mas tudo que recebeu foi mais um pouco daquela brisa fazendo brincadeiras com a sua saia. Virou-se devagar e encontrou a porta azul aberta, com as chaves balançando pelo lado de dentro.


Esse conto me veio à cabeça enquanto eu via esse filme esquisitinho e legal

sábado, 18 de agosto de 2012

Poesia


Essa         pichação é pra dizer que eu cansei dos seus abraços tangentes, desses seus beijos sem gosto, dessa sua vida certinha. Resolvi usar a pare o muro da frente porque eu já me 
cans fartei da entrada dos fundos, do elevador de serviço, da porta da cozinha. Devia ter desconfiado desde o início,                   só de ver essa sua mobília toda combinando, esses talheres e copos iguais que 
vêm em kit.                                                                                                               E esco
     E escolhi uma pichação no lugar de uma carta pra mostrar pra mim mesmo que essa sua mania de ser discreta e sóbria NÃO pegou em mim. E também foi pra fazer você passar vergonha, é claro. HAHA
                                                       ==> Só mais um recado: 
quando for repintar o muro pra apagar isso aqui (o que eu tenho CERTEZA que você vai fazer), vê se usa um vermelho ou um verde. Esse amarelo combina demais com      Você.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Fuso


      Ele, se pudesse, usaria toda a sua força para sair correndo pela bola da Terra e ir pulando, como se fossem obstáculos, cada fuso horário que encontrasse. Ela voaria para além da atmosfera e esperaria o mundo dar três quartos de volta para só então pousar de novo, se fosse conveniente. Se pudessem desaprender a matemática básica, o fariam. É cansativo demais fazer contas de + 6 ou – 6, adicionar 1 para quando é verão, depois subtrair quando for inverno... Fariam, os dois, tudo que fosse necessário para evitar os clichês “o que será que ele está fazendo agora?” ou “será que ela já foi deitar?”.

      Se fossem escolher os próprios sonhos, não escolheriam nada parecido com uma chuva de relógios gigantes ou um afogamento dramático depois de horas a nado. Pensavam constantemente na época em que o tempo era só uma questão de ponteiros, e não de distância. Lembravam-se com saudosismo do privilégio de dividir um mesmo horizonte (que um dia tiveram). A última coisa que pensavam para o próprio futuro, há alguns anos atrás, era isso.

      Mas, por distração do destino, no fim da tarde de uma terça-feira gelada (para ela) e no meio dia da mesma terça-feira geladíssima (para ele), o sol se pôs em um espetáculo único. E quando digo único, não me refiro só à beleza singular do fenômeno, mas ao fato de estar acontecendo ao mesmo tempo para os dois lugares. Para os dois.

      Na teoria, aquele pôr do sol indicava o início de um inverno rigoroso, principalmente para ele. Na cidade onde estava, ele só veria noite por uns bons meses. Mas, na prática, aquele momento tinha reacendido alguma coisa dentro dela e despertado o melhor dos sentimentos para ele. O inverno tinha oficialmente começado, mas, dentro dos dois, era primavera.


domingo, 15 de julho de 2012

Sobre como deveria ter sido

     Saltaríamos do táxi em frente à entrada principal, você carregando as malas grandes e eu fingindo ajudar, pegando uma mochila pequena e a minha bolsa de mão. Cruzaríamos as portas automáticas e andaríamos pelos corredores demasiadamente iluminados, preocupados em achar o guichê certo e conferindo o relógio a cada cinco minutos. Não que fôssemos estar atrasados, mas esse é um dos artifícios para quando estamos em situações desconfortáveis, recorrer a um hábito corriqueiro como conferir as horas. Enfrentaríamos as filas tentando travar diálogos simples, nada muito nostálgico ou relevante. 

     Depois de despachar a bagagem, tomaríamos café em uma daquelas lanchonetes com mesinhas para dois. Eu faria alguma observação sobre as flores do balcão, você diria que o pedaço de bolo que pediu não estava bom. E enquanto o líquido escuro descesse pelas nossas gargantas, o silêncio finalmente se estabeleceria entre nós. Não como um elefante grande e inconveniente, como ele costuma ser nessas situações, mas como um alívio que ambos estavam adiando, incompreensivelmente. 

     Andaríamos até a ala de espera e sentaríamos lado a lado em um daqueles bancos enormes. Eu correria os olhos sobre um livro qualquer e você ficaria no celular, checando e-mails. Depois de alguns minutos, eu te daria o livro e pediria o celular para ouvir música. 

     Quando finalmente o aviso do voo soasse nos alto-falantes do aeroporto, nos levantaríamos e eu te levaria até o portão de embarque. Você deixaria a mochila no chão e me abraçaria como se fosse a última vez. Talvez fosse, realmente. Minha cabeça encontraria o ponto exato entre o seu pescoço e a sua clavícula, onde ela se encaixa tão bem, e nós ficaríamos ali por pelo menos 5 minutos. Quando fosse mesmo hora de ir, meus dedos se aninhariam em seu cabelo e nós daríamos um beijo curto. Provavelmente seria estranho, com gosto de choro apesar de não haver lágrimas. Com jeito de último, embora não houvesse certeza. 

     Você pegaria sua mochila e iria embora sem olhar para trás. Eu ficaria te olhando até você virar um ponto no fim do corredor. A essa altura, com certeza haveria lágrima em meu rosto, mas eu não sentiria como se estivesse quebrando uma promessa. Por trás do seu andar seguro em direção àquele avião, eu seria capaz de ver a água nos seus olhos também. 

     Mas, apesar da quantidade insana de futuro do pretérito nesse texto, não é assim que deveria ter sido. O bom, pra mim, seria se você nunca tivesse ido.


quarta-feira, 27 de junho de 2012

Fatal


     E então, em meio a um abraço, meu punhal perfurou pele, gordura, músculos, abriu algumas dezenas de vasos sanguíneos e finalmente encontrou os tecidos vitais que procurava, causando um estrago quase instantaneamente fatal.
     O corpo mole caiu aos meus pés e a roupa de linho branco, ensopada de sangue, estava colada na ferida recém-aberta.  A respiração se manteve calma até o momento em que o líquido obstruiu a garganta e passou a também sair pela boca, formando um filete vermelho vivo no canto do lábio.
     Ciente do meu êxito, olhei para o rosto da vítima durante os seus últimos segundos. Os cantos da boca lentamente se curvaram para cima e os olhos cintilavam com um brilho meio tétrico, como se desejassem aquele momento. Ela queria ser morta.
     Talvez não tanto quanto eu queria matá-la. Saudade.

sábado, 2 de junho de 2012

Solidão é saudade de alguém que nunca existiu


    Ontem, quando cruzou aquela avenida, sentiu solidão. Parecia que área de seu corpo que envolve o coração estava se encolhendo devagar e sendo empurrada pra dentro, mas tudo continuava estável pelo lado de fora. Nos primeiros minutos, soou como uma melancolia saudável, aquela tristeza leve que a gente sente às vezes, quando está sozinho, e que passa assim que lembramos de alguma coisa boa. Essa solidão faz até bem, pensava ela. Faz você se sentir um personagem de filme ou de livro, que sempre toma as decisões mais importantes do enredo enquanto anda sozinho pelas ruas ou toma uma bebida amarga no balcão de um bar vazio.
    O problema é que, ontem, não havia decisão a ser tomada, não havia uma ligação importante a ser feita. Não havia sequer uma tristeza boa para ser lembrada ou um passado negro a ser remoído. As tolices da adolescência, que costumavam diverti-la e até mesmo inspirá-la, viraram apenas tolices e lembranças das quais se envergonhar. Entre uma passada e outra, tudo se tornara ridículo, fútil, intragável, sem propósito: as roupas, o jeito que tinha prendido o cabelo, a mensagem que tinha mandado para o amigo que já não via há tempos (e que não tinha sido respondida), o flerte com o desconhecido no ônibus. É incrível como alguns minutos desse sentimento podem fazer você se arrepender de tudo que fez nas últimas 48 horas. É como se você mesmo se tornasse o único espectador de todos os seus atos e decisões e julgasse cada palavra, cada movimento.
    Dessa vez, não era solidão Hollywoodiana. Não havia o que ser feito.
    Agora, pelo menos, ela tinha uma explicação: solidão é saudade de alguém que nunca existiu.



quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Bip

Não estamos em casa, deixe o seu recado após o Bip

“Meu Deus, uma secretária eletrônica... Isso vai ser estranho, mas vamos lá: terça feira eu passei no apartamento pra pegar algumas coisas que estavam faltando e acabei passando umas duas horas por lá. Depois de encaixotar as coisas, eu passei pela varanda e lembrei como a vista era linda (você reparou naquele céu de terça?). Você sabe como eu amo os últimos minutos da tarde... Ver tudo se transformando de amarelo para laranja e depois para rosa e lilás até virar breu. É como se a gente pudesse aproveitar o melhor dos dois períodos, sem ter que escolher. Nunca consegui decidir se sou uma pessoa do dia ou da noite. Mas enfim, quando as primeiras estrelas começaram a aparecer, a minha visão ficou turva e eu percebi que estava chorando. É claro que eu já chorei antes, mas nunca passou de um aperto no peito e um olho marejado. Mas na terça eu cheguei a molhar as mangas da minha camisa com lágrimas e dar uns soluços tipo os que as mulheres dão nos filmes. É que eu percebi que essa mudança não tem nada a ver com janelas maiores ou tomadas mais bem posicionadas... Também não tem a ver com paredes menos sujas de memórias ou um sofá com menos vincos de experiências. Há muito tempo, a minha ideia de lar era qualquer lugar onde eu estivesse com você, e lembrar disso tornou o noss... o apartamento frio demais. Entregar as chaves na imobiliária foi como assinar um contrato de abandono de você.
Enquanto eu chorava, a única coisa em que eu pensava era se aquele momento equivalia às cenas dos filmes em que o mocinho conclui uma fase e segue, de queixo erguido, para uma muito melhor; ou se aquele momento tinha mais a ver com o choro amargo dos finais infelizes ou com o choro insignificante de algum coadjuvante, de quem todos sentem pena.
O que eu quero de verdade com esse telefonema é dizer que eu sinto muito, muito mesmo, se eu demorei demais para entender a profundidade das coisas. Se esse for mesmo o momento em que a nossa estrada se bifurca, que a gente possa ser grato ao destino pelo que vivemos até aqui. Que a gente possa ser grato às circunstâncias invisíveis (mas palpáveis) que vão nos poupar de algo que nós nem mesmo queremos. Ou que só achamos que queremos. Desculpa se estou meio confuso, acabei de beber uma garrafa inteira daquele champagne velho que a gente guardava pra ocasiões especiais. Droga, não devia ter falado isso... Agora você vai achar que eu estou falando essas coisas da boca pra fora. Mas eu não estou, eu posso jurar. Você mesma diz que a bebida só faz você colocar pra fora coisas que você já queria dizer, mas não teve coragem. No meu caso, acho que não faltou coragem... Mas sobrou orgulho, isso é verdade.
Esse papo de champagne também me fez perceber que eu já não sou um garoto. Eu preciso tomar decisões todos os dias, todas as horas... e hoje eu vejo que não consigo tomar decisões sozinho. Parece que o meu “eu tomador de decisões” é um mosaico de todo mundo que já passou pela minha vida. A voz que diz “não” ou “sim” ou “talvez” é uma mistura da voz dos meus pais, dos meus professores, dos meus amigos de faculdade, de trabalho, da sua voz. Não acho que isso seja uma falta de personalidade nem nada, é algo que acontece com todo mundo. O ponto é que eu não consigo me desvencilhar das pessoas que passaram pela minha vida, porque eu sou um pouco de cada uma delas. Entendeu mais ou menos?
Preciso de um lugar onde eu possa pintar a nossa história nas paredes e no teto. Um lugar em que eu possa olhar pra mim mesmo todo dia e que isso não doa. Talvez eu nunca consiga ou talvez semana que vem eu já esteja muito bem sucedido. Eu não sei.
(silêncio)
Mas se no final das contas eu descobrir que esse lugar é um lugar que nós já conhecemos, que só nós dois conhecemos, eu quero que você vá comigo. Eu quero esquecer as bagagens e as caixas e quero que você vá comigo.
Acabei de receber o aviso de que meu tempo está acabando. Se um dia você chegar a ouvir isso, quero que me ligue imediatamente. Quando eu vir o seu nome piscar na tela, vou saber sua resposta. Não é pretensão nem nada... É que eu sei que esse telefone continua no nosso apartamento. Se você voltar lá algum dia e ainda apertar o botão da secretária, só pode ser um sinal, um sinal de que é pra ser. Por que é como eu acabei de dizer: o destino nos poupa das coisas que não queremos de verdade, mas se algo tem mesmo que acontecer, ele dá uma força.
Te amo, até logo.”

*Três músicas que eu amo devem receber créditos por esse texto (e merecem ser ouvidas): Somewhere only we know, Home e Evening Kitchen