quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Grey

Ela bateu a porta sem nem olhar pra trás.
Enquanto juntava seus pertences espalhados pela casa, a cada piscada que eu dava uma cor se esvaía. Tentei manter os olhos abertos por mais tempo, numa tentativa ridícula de adiar aquilo, mas a ardência fechava as minhas pálpebras e quando eu as abria novamente, lá se tinham ido duas ou três matizes. Ela carregou naquela caixa de papelão a minha alegria.
Se ela fosse uma cor, seria azul marinho. Combinava com meu sorriso amarelo! Mas, pelo visto, ela achou a combinação carro vermelho + casa branca de vidros verdes mais... harmoniosa.
O engraçado é que, no início de tudo, seu passatempo preferido era "dar mais tonalidade a minha vida". Em alguns meses, tinha transformado meus dias em telas de Monet e o meu apartamento em um projeto do qual Barragán se orgulharia. Os anos se passaram e agora ela foi embora. Levou a paleta com ela, é claro.
Tentei pintar tudo de novo, começar do zero. O problema é que eu só tinha guache, e depois da primeira lágrima foi tudo embora. Talvez tente aquarela mais tarde, quem sabe.
Só sei que, por enquanto, é melhor eu me acostumar com o cinza. (Que não vai deixar de ser uma bela cor, eu suponho).

sábado, 17 de setembro de 2011

Jornada

Acabei de ser criada. Saí da boca daquela menina ruiva que tem umas gotas escorrendo pelos olhos, logo ali na esquina. Ela me expeliu com tanta força de dentro de si que eu espirrei em todo mundo e foi difícil não me ouvir. Desde então, já passei por dentro do ouvido de várias gentes.
Engraçado foi ver a reação de quem passava enquanto eu entrava pelas orelhas ou saía pelas bocas de outras pessoas, mas dessa vez bem baixinho, tipo escondido.
Em alguns, era como se eu fosse uma pena fininha, dessas que fazem cócegas. Quando eu entrava, as pessoas esticavam os lábios para os lados, mostrando os dentes, e faziam um barulho estranho. Em outros, eu era uma faca que saía cortando por dentro e a reação era a dor escorrendo pelos olhos. Em outros poucos, a minha passagem causou escândalo e então eu vi alguns dedos tapando a boca em formato oval e depois alguns olhos esbugalhados. Por alguns eu passei despercebida, como se fosse um vento dentro de um quarto vazio. Em meio a um grupo de amigos, me misturei ao vinho e entrei direto pro estômago, causando danças constrangedoras e depois uma dor de cabeça arrumada.
Alguns me ignoraram, outros me ouviram e me repetiram em uma ou duas ocasiões. A menina ruiva, aquela que me concebeu lá no 1º parágrafo, nem lembrava mais que tinha me dito um dia. Um ou outro me guardou, lá no fundo, mas eu aproveitei uma dessas noites de vinho para escapulir durante um soluço e ir rondar por outras vizinhanças.
Até que um dia, um vento bateu e me pegou desprevenida, levantando-me do chão. Eu planei durante alguns segundos e, sem querer, entrei pelos ouvidos de um homem que passava a beira do caminho. Foi como cair em veludo e depois escorregar por entre espinhos, sem esquecer do mar agitado que tive que enfrentar para encontrar um pouco de calmaria. Mas a terra firme logo virou areia movediça e eu fui parar dentro da carga da caneta do homem. Em um piscar de olhos, já estava sendo lambuzada de tinta e passada para o papel. Pela primeira vez, fui escrita! E aquele homem parecia satisfeito com o resultado. Deitou sobre mim algumas outras folhas, mas sempre abria a página em que eu estava para dar mais uma olhada. E sorria.
Depois disso, tudo aconteceu rápido. Fui vista por mais algumas pessoas e ouvida por outras durante alguns telefonemas. Em algumas semanas, já estava sendo digitada em um teclado preto e depois prensada em novas folhas de papel por máquinas gigantes. Eu cheguei às bancas e às livrarias poucos meses depois. E que agitação! Passei por centenas de mãos e, na mesma noite, lá estávamos nós, penetrando os ouvidos alheios e causando todo tipo de sensação. A menina ruiva passou os olhos por mim e sentiu uma ponta de familiaridade, mas logo virou a página.
O homem, à uma hora dessas, já está de volta à beira do caminho, esperando o vento bater. A nossa sorte é que a previsão para hoje é de vendaval.

sábado, 3 de setembro de 2011

Racional

E se eu não quiser mais confiar em você? E se eu resolver dar um mute no que você está dizendo, ou melhor, gritando alto na minha cabeça? Estou pensando em tatear no escuro por um tempo, te dar umas férias. Você deve estar bem cansada, afinal.
Nunca imaginei que a nossa convivência pudesse criar conflito um dia, nunca mesmo! Sempre fui tão orgulhosa de ter você como aliada, diferente da maioria das pessoas, que te desprezam ou esquecem que você existe. Você sempre me fez andar pelo caminho certo, tomando as atitudes certas, sendo amiga das pessoas certas... Mas e agora?
Ainda não entendo porque o seu alarme soava quando meus pés se entrelaçavam com os dele ou quando os dedos se tocavam por baixo da mesa. Não vejo o mal que você vê em cozinhar e jantar a dois, fazer brigadeiro enquanto o outro lava a louça e depois raspar a panela até fazer barulho. Sempre notei o seu olhar desconfiado enquanto a gente cochilava em algum filme ruim ou a sua cara de desprezo quando a gente dançava, de meias no chão, uma música qualquer na sala. Lembro do dia em que lia um livro apoiada nas costas dele e me distraí observando as linhas e caminhos dos fios de cabelo pela nuca. Você, sem dó, jogou na minha cara que “nem ler eu conseguia mais”.
E essa sua aversão ao que eu entendia por felicidade acabou me contaminando. Será você tão sábia assim? E quem te ensinou tão bem a me engambelar? Hoje penso que alimentei demais você, te endeusei demais.
Agora a única coisa que eu espero é que a sua companhia seja tão agradável quanto a dos olhos que eu deixei ir embora e que os seus braços sejam tão firmes quanto os dele seriam no caso de eu escorregar.
Ou de precisar de um abraço.