quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Bip

Não estamos em casa, deixe o seu recado após o Bip

“Meu Deus, uma secretária eletrônica... Isso vai ser estranho, mas vamos lá: terça feira eu passei no apartamento pra pegar algumas coisas que estavam faltando e acabei passando umas duas horas por lá. Depois de encaixotar as coisas, eu passei pela varanda e lembrei como a vista era linda (você reparou naquele céu de terça?). Você sabe como eu amo os últimos minutos da tarde... Ver tudo se transformando de amarelo para laranja e depois para rosa e lilás até virar breu. É como se a gente pudesse aproveitar o melhor dos dois períodos, sem ter que escolher. Nunca consegui decidir se sou uma pessoa do dia ou da noite. Mas enfim, quando as primeiras estrelas começaram a aparecer, a minha visão ficou turva e eu percebi que estava chorando. É claro que eu já chorei antes, mas nunca passou de um aperto no peito e um olho marejado. Mas na terça eu cheguei a molhar as mangas da minha camisa com lágrimas e dar uns soluços tipo os que as mulheres dão nos filmes. É que eu percebi que essa mudança não tem nada a ver com janelas maiores ou tomadas mais bem posicionadas... Também não tem a ver com paredes menos sujas de memórias ou um sofá com menos vincos de experiências. Há muito tempo, a minha ideia de lar era qualquer lugar onde eu estivesse com você, e lembrar disso tornou o noss... o apartamento frio demais. Entregar as chaves na imobiliária foi como assinar um contrato de abandono de você.
Enquanto eu chorava, a única coisa em que eu pensava era se aquele momento equivalia às cenas dos filmes em que o mocinho conclui uma fase e segue, de queixo erguido, para uma muito melhor; ou se aquele momento tinha mais a ver com o choro amargo dos finais infelizes ou com o choro insignificante de algum coadjuvante, de quem todos sentem pena.
O que eu quero de verdade com esse telefonema é dizer que eu sinto muito, muito mesmo, se eu demorei demais para entender a profundidade das coisas. Se esse for mesmo o momento em que a nossa estrada se bifurca, que a gente possa ser grato ao destino pelo que vivemos até aqui. Que a gente possa ser grato às circunstâncias invisíveis (mas palpáveis) que vão nos poupar de algo que nós nem mesmo queremos. Ou que só achamos que queremos. Desculpa se estou meio confuso, acabei de beber uma garrafa inteira daquele champagne velho que a gente guardava pra ocasiões especiais. Droga, não devia ter falado isso... Agora você vai achar que eu estou falando essas coisas da boca pra fora. Mas eu não estou, eu posso jurar. Você mesma diz que a bebida só faz você colocar pra fora coisas que você já queria dizer, mas não teve coragem. No meu caso, acho que não faltou coragem... Mas sobrou orgulho, isso é verdade.
Esse papo de champagne também me fez perceber que eu já não sou um garoto. Eu preciso tomar decisões todos os dias, todas as horas... e hoje eu vejo que não consigo tomar decisões sozinho. Parece que o meu “eu tomador de decisões” é um mosaico de todo mundo que já passou pela minha vida. A voz que diz “não” ou “sim” ou “talvez” é uma mistura da voz dos meus pais, dos meus professores, dos meus amigos de faculdade, de trabalho, da sua voz. Não acho que isso seja uma falta de personalidade nem nada, é algo que acontece com todo mundo. O ponto é que eu não consigo me desvencilhar das pessoas que passaram pela minha vida, porque eu sou um pouco de cada uma delas. Entendeu mais ou menos?
Preciso de um lugar onde eu possa pintar a nossa história nas paredes e no teto. Um lugar em que eu possa olhar pra mim mesmo todo dia e que isso não doa. Talvez eu nunca consiga ou talvez semana que vem eu já esteja muito bem sucedido. Eu não sei.
(silêncio)
Mas se no final das contas eu descobrir que esse lugar é um lugar que nós já conhecemos, que só nós dois conhecemos, eu quero que você vá comigo. Eu quero esquecer as bagagens e as caixas e quero que você vá comigo.
Acabei de receber o aviso de que meu tempo está acabando. Se um dia você chegar a ouvir isso, quero que me ligue imediatamente. Quando eu vir o seu nome piscar na tela, vou saber sua resposta. Não é pretensão nem nada... É que eu sei que esse telefone continua no nosso apartamento. Se você voltar lá algum dia e ainda apertar o botão da secretária, só pode ser um sinal, um sinal de que é pra ser. Por que é como eu acabei de dizer: o destino nos poupa das coisas que não queremos de verdade, mas se algo tem mesmo que acontecer, ele dá uma força.
Te amo, até logo.”

*Três músicas que eu amo devem receber créditos por esse texto (e merecem ser ouvidas): Somewhere only we know, Home e Evening Kitchen