sábado, 24 de agosto de 2013

Cora

Você era a sua voz. Durante os 4 meses que estive cego e que você cuidou de mim, a minha figura era a de um homem enrugado pelo fogo, deitado imóvel na cama com os olhos esbugalhados, vermelhos. Você não tinha imagem. O timbre da sua voz e a sua respiração não se encaixavam em nenhuma silhueta possível e a minha cabeça não encontrou outro caminho senão te associar a cores.

Você era as suas mãos. Durante os 4 meses que estive cego e que você cuidou de mim, as suas mãos foram o meu atalho para a dor e o alívio. Os seus movimentos rápidos e precisos me fizeram curativos, me alimentaram, mediram minha temperatura, me deitaram à noite, e eu sonhava um mergulho em mar aberto, o sal abrindo as minhas feridas.

Você era as suas cicatrizes. Durante os 4 meses que estive cego e que você cuidou de mim, eu descobri, além da sua voz e das suas mãos, a cordilheira que você cultivara no peito. Com a ponta dos dedos eu li a sua história e não me senti mais sozinho. As suas marcas não eram queimaduras como as minhas, mas eram marcas de outro fogo, um que nunca para de queimar. Então, com as minhas mãos, eu segurei o seu rosto minúsculo e com a minha voz, eu beijei a sua. E foi como um mergulho em alto mar, o sal curando as feridas.

Você era o seu silêncio. Durante 4 meses eu estive cego, agora eu posso ver.

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Prateleira

Te achei assim, num dia qualquer
Livraria pequena do centro
Frase solta perdida no meio de um livro

Esmiucei as palavras
Ativei os meus sentidos para entender melhor
Os seus

Cheguei em casa, te escrevi pelas paredes
Nas vidraças das janelas
No cantinho dos cadernos
No painel do elevador...

E era tão bom te amar assim!
Tão sem contexto,
Tão sem passado,
Sem personagem.
Sem 3ª edição.

domingo, 19 de maio de 2013

Dear me

Eu queria poder tomar uma decisão e viver de bem com ela pra sempre. Eu queria abrir mão desse tormento que é a minha consciência oscilando entre a coragem e o medo a cada cinco segundos. Eu queria me impor e dizer em voz alta as coisas que eu quero. Eu queria saber quais coisas eu quero. Eu queria chutar para o alto, de uma vez por todas, essa balança de futuro e passado e abraçar o presente, só o presente. Eu queria parar de tentar ser o que as pessoas acham que eu sou. E eu também estou longe de querer ser quem eu sou nesse exato momento. Eu só queria uma felicidade sem pesos.

segunda-feira, 13 de maio de 2013

Flashforward


Eu sei de tudo que eu devo fazer. Passei os dois últimos meses pensando profundamente em prós e contras, em consequências. Tomei a minha decisão duas noites atrás, mas ainda não disse nada. Poderia mentir e dizer que eu ainda não consegui, mas a verdade é que eu não quero. No fundo, o meu maior desejo é que você possa captar as coisas no ar, sem que eu tenha que dizer as palavras. Sempre acontece com a gente.

Tomei a minha decisão uma semana atrás, mas preferi adiar por alguns dias a nossa conversa. Enquanto isso, eu bebo cada segundo, como alguém prestes a ir para o deserto por vontade própria, e me flagro em pedidos desesperados de socorro que só eu mesma conseguiria entender, atender.

Viajei alguns anos no tempo e senti a saudade que eu sentiria de você. Tomou o meu corpo inteiro e doeu lugares que eu nem sabia que existiam. Pensei em desistir e rever as minhas opções, mas, ao contrário, te abracei mais forte, como se tentasse extrair a sua essência, guardar em um vidrinho os seus braços longos, as sobrancelhas arqueadas, as suas palavras raras, mas sempre bem ditas. Esculpi os nossos últimos dias como alguém que quer evitar de qualquer maneira os arrependimentos do futuro. “Se eu soubesse que seria assim, teria aproveitado melhor”.

Tomei a minha decisão um mês atrás e eu deveria fazer o que é certo, mas não há contras suficientes. Só consequências demais.