sábado, 17 de setembro de 2011

Jornada

Acabei de ser criada. Saí da boca daquela menina ruiva que tem umas gotas escorrendo pelos olhos, logo ali na esquina. Ela me expeliu com tanta força de dentro de si que eu espirrei em todo mundo e foi difícil não me ouvir. Desde então, já passei por dentro do ouvido de várias gentes.
Engraçado foi ver a reação de quem passava enquanto eu entrava pelas orelhas ou saía pelas bocas de outras pessoas, mas dessa vez bem baixinho, tipo escondido.
Em alguns, era como se eu fosse uma pena fininha, dessas que fazem cócegas. Quando eu entrava, as pessoas esticavam os lábios para os lados, mostrando os dentes, e faziam um barulho estranho. Em outros, eu era uma faca que saía cortando por dentro e a reação era a dor escorrendo pelos olhos. Em outros poucos, a minha passagem causou escândalo e então eu vi alguns dedos tapando a boca em formato oval e depois alguns olhos esbugalhados. Por alguns eu passei despercebida, como se fosse um vento dentro de um quarto vazio. Em meio a um grupo de amigos, me misturei ao vinho e entrei direto pro estômago, causando danças constrangedoras e depois uma dor de cabeça arrumada.
Alguns me ignoraram, outros me ouviram e me repetiram em uma ou duas ocasiões. A menina ruiva, aquela que me concebeu lá no 1º parágrafo, nem lembrava mais que tinha me dito um dia. Um ou outro me guardou, lá no fundo, mas eu aproveitei uma dessas noites de vinho para escapulir durante um soluço e ir rondar por outras vizinhanças.
Até que um dia, um vento bateu e me pegou desprevenida, levantando-me do chão. Eu planei durante alguns segundos e, sem querer, entrei pelos ouvidos de um homem que passava a beira do caminho. Foi como cair em veludo e depois escorregar por entre espinhos, sem esquecer do mar agitado que tive que enfrentar para encontrar um pouco de calmaria. Mas a terra firme logo virou areia movediça e eu fui parar dentro da carga da caneta do homem. Em um piscar de olhos, já estava sendo lambuzada de tinta e passada para o papel. Pela primeira vez, fui escrita! E aquele homem parecia satisfeito com o resultado. Deitou sobre mim algumas outras folhas, mas sempre abria a página em que eu estava para dar mais uma olhada. E sorria.
Depois disso, tudo aconteceu rápido. Fui vista por mais algumas pessoas e ouvida por outras durante alguns telefonemas. Em algumas semanas, já estava sendo digitada em um teclado preto e depois prensada em novas folhas de papel por máquinas gigantes. Eu cheguei às bancas e às livrarias poucos meses depois. E que agitação! Passei por centenas de mãos e, na mesma noite, lá estávamos nós, penetrando os ouvidos alheios e causando todo tipo de sensação. A menina ruiva passou os olhos por mim e sentiu uma ponta de familiaridade, mas logo virou a página.
O homem, à uma hora dessas, já está de volta à beira do caminho, esperando o vento bater. A nossa sorte é que a previsão para hoje é de vendaval.

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