Os dois tinham adiado aquele dia por semanas. Talvez por não quererem se ver depois de tudo que tinha acontecido, talvez por ainda haver alguma esperança de que tudo aquilo não fosse ser necessário. Dividir uma estante inteira de livros ia ser uma tarefa árdua, ambos sabiam. Nunca imaginaram, ao longo de todos os anos que levaram para construir aquele pequeno acervo juntos, que teriam de passar por uma partilha. Eram um casal diferente, em diversos aspectos: toda a parte litigiosa que geralmente envolve móveis, carros, apartamentos tinha sido rapidamente resolvida por uma espécie de acordo não verbal. Suas vidas eram bem independentes nesse sentido e não houve problema na hora de decidir quem levaria a poltrona da sala ou o telefone antigo que ficava na bancada da cozinha. A única área daquele apartamento onde seus territórios realmente se cruzavam era a imponente estante de livros.
Não havia como ignorar a importância de cada página ali. Cada história era um pedaço da mistura em que tinham se transformado, cada personagem era um amigo em comum que os havia feito companhia em noites difíceis, em viagens a outros países, em dias de solidão e de dúvida. Todos os livros do acervo tinham sido lidos pelos dois, sem exceção, em cumprimento a um pacto que fizeram assim que passaram a morar juntos. Não é estranho então que existissem dois volumes de uma mesma obra em alguns casos: às vezes, a ansiedade era tanta que era impossível esperar o outro terminar a leitura. Chegavam a trocar mensagens de texto com comentários sobre o que tinha acontecido no último capítulo ou ligavam um para o outro e tinham discussões calorosas no meio do trabalho por causa da reviravolta na vida do personagem principal. Muitas vezes, deitados lado a lado na cama com os livros no colo, interromperam a leitura um do outro para dividir uma citação impressionante ou choraram em silêncio, só com lágrimas, quando as ficções ficavam muito parecidas com a realidade.
A campainha tocou e ela foi atender, meio inibida pela peculiaridade da situação. Ele entrou segurando algumas caixas ainda desmontadas na mão, inclinou-se e beijou-a no rosto com a mesma delicadeza que lhe era de costume. Foi andando até as prateleiras com a intimidade de alguém que viveu naquele espaço por mais de 10 anos e passou a mão nas lombadas de todos os livros da última fileira, onde ela nem podia alcançar.
–Isso não vai ser tão difícil, vai? – ele perguntou.
–Eu acho que não... – ela respondeu com pouca convicção – Pensei em um esquema para facilitar as coisas: a gente começa dividindo os volumes repetidos, que não vão gerar dúvida. Depois a gente separa os livros acadêmicos, passa para as coleções, para os livros de arte e de poesia, para os romances e então acaba.
Ele riu entre os dentes. Ela não perguntou, mas sabia que era uma crítica a sua mania de organizar e criar métodos para tudo. Sem dizer nada, começou a garimpar os títulos repetidos enquanto ele montava as caixas que tinha trazido. Em questão de minutos, já tinham enchido duas caixas e, mesmo assim, a diferença na prateleira era quase invisível. Ele pegou os livros de economia e direito e ela separou os volumes de arte e arquitetura, mesmo percebendo que o olho dele escorregava constantemente para o sofá, onde ela empilhava uma coleção de surrealistas franceses. Eram os preferidos dele e ela sabia.
Tinham gostos muito diferentes quando o assunto era poesia, mas aprenderam a gostar de muitas coisas por causa da convivência, o que tornou tudo mais difícil. Sentaram-se em lados opostos e decidiram espalhar os livros pelo chão para facilitar o processo.
–Posso ficar com o Quintana e com o Drummond? – ele perguntou, meio inibido.
–Hum, pode. Mas então vou pegar Adélia Prado e Walt Whitman.
–Dickinson, Gregório de Matos, Borges...
–Borges não! – ela falou um pouco acima do tom – Eu queria muito ficar com o Borges.
–Tudo bem – os olhos se cruzaram por alguns instantes. Dentro das cabeças o mesmo filme passava: a viagem para Argentina, que tinha feito os dois gastarem fortunas com o excesso de bagagem e tinha dado início à paixão dos dois pela literatura da América Latina.
Terminaram as poesias e passaram para a ficção. Era o cerne da coleção. Reuniram todos os volumes no centro da estante e ficaram encarando o muro maciço durante alguns segundos.
–Você tem alguma coisa pra beber aí? – ele perguntou.
–Não tenho nada... Vamos comer algo.
Os dois foram para a cozinha e prepararam em silêncio uma refeição pequena com o que tinha na geladeira. Se revezaram no fogão e depois lavaram a louça. Sentaram no sofá em meio aos livros dela, com as canecas cheias de café e o coração apertado pelo tempo que se esvaía, pelo orgulho atravessado na garganta. Ele começou:
–Pensei em ficar com os beats, por motivos óbvios. – e então riu. Tinha a adolescência embrulhada naqueles livros, por mais que isso não condissesse com a sua aparência – Mas lembrei do quanto você gostou quando leu Kerouac e acho que vou deixar eles com você. Até porque eu compraria tudo de novo sem o menor esforço...
–Tive a mesma ideia em relação aos meus “romances de mulherzinha do século XIX”. Consigo reconstituir com precisão de detalhes o final de semana em que você leu North and South, sentado aqui mesmo nessa poltrona. Melhor ainda! Lembro de você falando que tinha gostado muito por causa do “valor documental sobre a revolução industrial na Inglaterra”! – ela respondeu, imitando a voz dele.
Os dois riram como já não faziam há meses. As lembranças, que ambos estavam tentando evitar desde o momento em que a campainha foi tocada, começaram a se acumular na superfície como as penas de um travesseiro que estoura no ar. Leves e lentas, muito agradáveis de se ver no início, mas trabalhosas e incômodas quando já formam um tapete grosso no chão.
–Isso não tem sentido nenhum. – ela disse com a voz baixa e pesada, quebrando o silêncio sepulcral que havia se instalado depois da audível crise de risos.
–Eu não quero levar essas caixas embora. A gente não precisa fazer isso.
–É, eu também acho. A gente pode deixar os livros aqui e você pode vir sempre que precisar pegar algum. Ou eu posso levar pra você, sei lá.
Eles se conheciam há tempo demais para não entenderem o que havia realmente por trás daquelas palavras. Ele passou a mão no cabelo dela e ela arranhou de leve a sua bochecha. Beijaram-se por longos minutos e adormeceram no sofá, em cima dos livros.
Não havia berço mais coerente. Estavam juntos outra vez.