quarta-feira, 1 de outubro de 2014

1. (miss)placed

A robusta mesa de madeira se estendia sob os seus cotovelos. As mãos estavam levemente entrelaçadas na altura do queixo e o copo d’água que ela acabara de encher continuava intacto logo ao lado. Os olhos caídos, quase fechados, fitavam a cozinha recém-reformada com a sensação estranha de não lembrar como era antes.

Então entra um alguém, que caminha em volta da mesa, abre os armários em busca de algo e depois se senta do lado oposto. Se não fosse pela familiaridade com a localização das coisas e a intimidade com que explorava o lugar, o julgaria por um desconhecido, com feições e trejeitos absolutamente estranhos.

Olhou em seu rosto e tentou subtrair as finas linhas em volta dos olhos, os primeiros cabelos brancos que coroavam o topo de sua cabeça. Retirou com os olhos o pijama velho que o cobria para encontrar costas, pelos, braços que ela talvez conhecesse. O jeito com que ele a olha de volta não deixa nenhuma pista e ela não sabe distinguir se por efeito da indiferença ou da intimidade.

A paisagem enquadrada pela janela é bonita e ela também a observa como se desembrulhasse um presente. Nuvens cinza avançam no horizonte, longe, e o vento sopra forte a ponto de empurrar uma das bandas da janela. O estrondo acorda os sentidos e ela se vê refletida em um dos quadradinhos de vidro. Uma mulher, desconhecida. 

Elas se entreolham e uma mistura de medo e nostalgia a invade, aos poucos, em pequenas doses. Ela conhece aquela cozinha, aquele homem, aquela paisagem, aquela mulher. 

Nada mudou.

sábado, 24 de agosto de 2013

Cora

Você era a sua voz. Durante os 4 meses que estive cego e que você cuidou de mim, a minha figura era a de um homem enrugado pelo fogo, deitado imóvel na cama com os olhos esbugalhados, vermelhos. Você não tinha imagem. O timbre da sua voz e a sua respiração não se encaixavam em nenhuma silhueta possível e a minha cabeça não encontrou outro caminho senão te associar a cores.

Você era as suas mãos. Durante os 4 meses que estive cego e que você cuidou de mim, as suas mãos foram o meu atalho para a dor e o alívio. Os seus movimentos rápidos e precisos me fizeram curativos, me alimentaram, mediram minha temperatura, me deitaram à noite, e eu sonhava um mergulho em mar aberto, o sal abrindo as minhas feridas.

Você era as suas cicatrizes. Durante os 4 meses que estive cego e que você cuidou de mim, eu descobri, além da sua voz e das suas mãos, a cordilheira que você cultivara no peito. Com a ponta dos dedos eu li a sua história e não me senti mais sozinho. As suas marcas não eram queimaduras como as minhas, mas eram marcas de outro fogo, um que nunca para de queimar. Então, com as minhas mãos, eu segurei o seu rosto minúsculo e com a minha voz, eu beijei a sua. E foi como um mergulho em alto mar, o sal curando as feridas.

Você era o seu silêncio. Durante 4 meses eu estive cego, agora eu posso ver.

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Prateleira

Te achei assim, num dia qualquer
Livraria pequena do centro
Frase solta perdida no meio de um livro

Esmiucei as palavras
Ativei os meus sentidos para entender melhor
Os seus

Cheguei em casa, te escrevi pelas paredes
Nas vidraças das janelas
No cantinho dos cadernos
No painel do elevador...

E era tão bom te amar assim!
Tão sem contexto,
Tão sem passado,
Sem personagem.
Sem 3ª edição.

domingo, 19 de maio de 2013

Dear me

Eu queria poder tomar uma decisão e viver de bem com ela pra sempre. Eu queria abrir mão desse tormento que é a minha consciência oscilando entre a coragem e o medo a cada cinco segundos. Eu queria me impor e dizer em voz alta as coisas que eu quero. Eu queria saber quais coisas eu quero. Eu queria chutar para o alto, de uma vez por todas, essa balança de futuro e passado e abraçar o presente, só o presente. Eu queria parar de tentar ser o que as pessoas acham que eu sou. E eu também estou longe de querer ser quem eu sou nesse exato momento. Eu só queria uma felicidade sem pesos.

segunda-feira, 13 de maio de 2013

Flashforward


Eu sei de tudo que eu devo fazer. Passei os dois últimos meses pensando profundamente em prós e contras, em consequências. Tomei a minha decisão duas noites atrás, mas ainda não disse nada. Poderia mentir e dizer que eu ainda não consegui, mas a verdade é que eu não quero. No fundo, o meu maior desejo é que você possa captar as coisas no ar, sem que eu tenha que dizer as palavras. Sempre acontece com a gente.

Tomei a minha decisão uma semana atrás, mas preferi adiar por alguns dias a nossa conversa. Enquanto isso, eu bebo cada segundo, como alguém prestes a ir para o deserto por vontade própria, e me flagro em pedidos desesperados de socorro que só eu mesma conseguiria entender, atender.

Viajei alguns anos no tempo e senti a saudade que eu sentiria de você. Tomou o meu corpo inteiro e doeu lugares que eu nem sabia que existiam. Pensei em desistir e rever as minhas opções, mas, ao contrário, te abracei mais forte, como se tentasse extrair a sua essência, guardar em um vidrinho os seus braços longos, as sobrancelhas arqueadas, as suas palavras raras, mas sempre bem ditas. Esculpi os nossos últimos dias como alguém que quer evitar de qualquer maneira os arrependimentos do futuro. “Se eu soubesse que seria assim, teria aproveitado melhor”.

Tomei a minha decisão um mês atrás e eu deveria fazer o que é certo, mas não há contras suficientes. Só consequências demais.


quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Capítulo


Os dois tinham adiado aquele dia por semanas. Talvez por não quererem se ver depois de tudo que tinha acontecido, talvez por ainda haver alguma esperança de que tudo aquilo não fosse ser necessário. Dividir uma estante inteira de livros ia ser uma tarefa árdua, ambos sabiam. Nunca imaginaram, ao longo de todos os anos que levaram para construir aquele pequeno acervo juntos, que teriam de passar por uma partilha. Eram um casal diferente, em diversos aspectos: toda a parte litigiosa que geralmente envolve móveis, carros, apartamentos tinha sido rapidamente resolvida por uma espécie de acordo não verbal. Suas vidas eram bem independentes nesse sentido e não houve problema na hora de decidir quem levaria a poltrona da sala ou o telefone antigo que ficava na bancada da cozinha. A única área daquele apartamento onde seus territórios realmente se cruzavam era a imponente estante de livros. 

Não havia como ignorar a importância de cada página ali. Cada história era um pedaço da mistura em que tinham se transformado, cada personagem era um amigo em comum que os havia feito companhia em noites difíceis, em viagens a outros países, em dias de solidão e de dúvida. Todos os livros do acervo tinham sido lidos pelos dois, sem exceção, em cumprimento a um pacto que fizeram assim que passaram a morar juntos. Não é estranho então que existissem dois volumes de uma mesma obra em alguns casos: às vezes, a ansiedade era tanta que era impossível esperar o outro terminar a leitura. Chegavam a trocar mensagens de texto com comentários sobre o que tinha acontecido no último capítulo ou ligavam um para o outro e tinham discussões calorosas no meio do trabalho por causa da reviravolta na vida do personagem principal. Muitas vezes, deitados lado a lado na cama com os livros no colo, interromperam a leitura um do outro para dividir uma citação impressionante ou choraram em silêncio, só com lágrimas, quando as ficções ficavam muito parecidas com a realidade. 

A campainha tocou e ela foi atender, meio inibida pela peculiaridade da situação. Ele entrou segurando algumas caixas ainda desmontadas na mão, inclinou-se e beijou-a no rosto com a mesma delicadeza que lhe era de costume. Foi andando até as prateleiras com a intimidade de alguém que viveu naquele espaço por mais de 10 anos e passou a mão nas lombadas de todos os livros da última fileira, onde ela nem podia alcançar.

–Isso não vai ser tão difícil, vai? – ele perguntou.
–Eu acho que não... – ela respondeu com pouca convicção – Pensei em um esquema para facilitar as coisas: a gente começa dividindo os volumes repetidos, que não vão gerar dúvida. Depois a gente separa os livros acadêmicos, passa para as coleções, para os livros de arte e de poesia, para os romances e então acaba.

Ele riu entre os dentes. Ela não perguntou, mas sabia que era uma crítica a sua mania de organizar e criar métodos para tudo. Sem dizer nada, começou a garimpar os títulos repetidos enquanto ele montava as caixas que tinha trazido. Em questão de minutos, já tinham enchido duas caixas e, mesmo assim, a diferença na prateleira era quase invisível. Ele pegou os livros de economia e direito e ela separou os volumes de arte e arquitetura, mesmo percebendo que o olho dele escorregava constantemente para o sofá, onde ela empilhava uma coleção de surrealistas franceses. Eram os preferidos dele e ela sabia.

Tinham gostos muito diferentes quando o assunto era poesia, mas aprenderam a gostar de muitas coisas por causa da convivência, o que tornou tudo mais difícil. Sentaram-se em lados opostos e decidiram espalhar os livros pelo chão para facilitar o processo. 

–Posso ficar com o Quintana e com o Drummond? – ele perguntou, meio inibido.
–Hum, pode. Mas então vou pegar Adélia Prado e Walt Whitman.
–Dickinson, Gregório de Matos, Borges...
–Borges não! – ela falou um pouco acima do tom – Eu queria muito ficar com o Borges.
–Tudo bem – os olhos se cruzaram por alguns instantes. Dentro das cabeças o mesmo filme passava: a viagem para Argentina, que tinha feito os dois gastarem fortunas com o excesso de bagagem e tinha dado início à paixão dos dois pela literatura da América Latina.

Terminaram as poesias e passaram para a ficção. Era o cerne da coleção. Reuniram todos os volumes no centro da estante e ficaram encarando o muro maciço durante alguns segundos. 

–Você tem alguma coisa pra beber aí? – ele perguntou.
–Não tenho nada... Vamos comer algo.

Os dois foram para a cozinha e prepararam em silêncio uma refeição pequena com o que tinha na geladeira. Se revezaram no fogão e depois lavaram a louça. Sentaram no sofá em meio aos livros dela, com as canecas cheias de café e o coração apertado pelo tempo que se esvaía, pelo orgulho atravessado na garganta. Ele começou: 

–Pensei em ficar com os beats, por motivos óbvios. – e então riu. Tinha a adolescência embrulhada naqueles livros, por mais que isso não condissesse com a sua aparência – Mas lembrei do quanto você gostou quando leu Kerouac e acho que vou deixar eles com você. Até porque eu compraria tudo de novo sem o menor esforço...
–Tive a mesma ideia em relação aos meus “romances de mulherzinha do século XIX”. Consigo reconstituir com precisão de detalhes o final de semana em que você leu North and South, sentado aqui mesmo nessa poltrona. Melhor ainda! Lembro de você falando que tinha gostado muito por causa do “valor documental sobre a revolução industrial na Inglaterra”! – ela respondeu, imitando a voz dele.

Os dois riram como já não faziam há meses. As lembranças, que ambos estavam tentando evitar desde o momento em que a campainha foi tocada, começaram a se acumular na superfície como as penas de um travesseiro que estoura no ar. Leves e lentas, muito agradáveis de se ver no início, mas trabalhosas e incômodas quando já formam um tapete grosso no chão. 

–Isso não tem sentido nenhum. – ela disse com a voz baixa e pesada, quebrando o silêncio sepulcral que havia se instalado depois da audível crise de risos.
–Eu não quero levar essas caixas embora. A gente não precisa fazer isso.
–É, eu também acho. A gente pode deixar os livros aqui e você pode vir sempre que precisar pegar algum. Ou eu posso levar pra você, sei lá.

Eles se conheciam há tempo demais para não entenderem o que havia realmente por trás daquelas palavras. Ele passou a mão no cabelo dela e ela arranhou de leve a sua bochecha. Beijaram-se por longos minutos e adormeceram no sofá, em cima dos livros. 

Não havia berço mais coerente. Estavam juntos outra vez.


domingo, 9 de setembro de 2012

Ar


      O rubor já tinha começado a desaparecer das bochechas dela e o coração já tinha adotado uma batida mais resignada, quando a porta do elevador se abriu e ele saiu de cabeça baixa, carregado de sacolas. A falta de resposta às várias batidas que ela havia dado na porta dele tinha causado uma mistura de emoções que ela não conseguia processar: metade dela sentia alívio, a outra também; depois, uma outra metade apareceu, absolutamente decepcionada e esperando dar um destino a todas aquelas palavras ensaiadas; no final das contas, o contentamento já tinha se instalado e ela caminhava até o início do corredor refazendo os planos que já estavam tão bem arrematados.

      Aquela aparição inesperada tinha lhe tirado o rumo (mais uma vez), como quando um ímã se aproxima da bússola. A cabeça permaneceu baixa, mas ela sabia que já tinha sido notada. Teve a confirmação quando ele olhou para cima com uma expressão “feita”, uma máscara de indiferença muito mal ajustada, que não convencia, mas machucava de qualquer forma. Os olhos eram duros de julgamento e a boca quase gritava um insulto só através da maneira como estava fechada. As sobrancelhas arqueadas, severas, não combinavam com o tom de pele claro e rosado nas bochechas, agora cobertas com uma barba mal feita.

      As primeiras palavras trocadas não valem a pena serem transcritas. Nada além de um roteiro de filme barato, cheio de “porquês” e “você não tinha o direito”. Mas, quando as palavras ensaiadas acabaram, algo realmente sincero saiu da boca dela:

      -Olha, eu não sei por que essa discussão começou. Eu vim aqui disposta a aceitar qualquer culpa, a engolir o orgulho e a pedir desculpas. Só desculpas. Você não foi o motivo de eu ter ido embora, você não tinha nada a ver com isso, pra falar a verdade. E Deus sabe como você me fez falta esse tempo todo! (silêncio constrangedor pós-revelação que ela considerava muito íntima) Não quero que você diga nada, eu só precisava vir aqui e mostrar um pouco de humilhação e arrependimento (que são as duas coisas que eu mais odeio demonstrar no mundo, e você sabe disso). Eu precisava disso para continuar.

      Os dois ficaram se olhando por um bom tempo e então ele começou a andar em sua direção. Ela ficou se perguntando o que aquilo queria dizer. As sacolas balançavam em sua mão e pareciam pesadas demais. Ele ia abraçá-la? Ele ia se aproximar só para insultá-la mais de perto? Ou ele queria que o NÃO fosse mais audível? Ao contrário das expectativas, ele se desviou pouco antes de chegar à frente dela e passou direto. De costas, ela pôde ouvi-lo pousando algumas sacolas no chão, pegando as chaves do bolso e abrindo a porta com um pequeno estardalhaço.

      Uma das poucas coisas que tinha aprendido em todo aquele tempo de relacionamento era a interpretar pequenos gestos, e aquela postura não soava nada bem. Ela tinha falhado, mais uma vez. Já estava preparada para uma entrada rápida e uma batida violenta de porta, mas tudo que sentiu foi um vento leve soprando a saia. Vinha da janela da sala, oposta à porta principal. Ela se manteve de costas com os olhos fechados, esperando o estrondo da porta e uma lufada de vento ainda mais forte, mas tudo que recebeu foi mais um pouco daquela brisa fazendo brincadeiras com a sua saia. Virou-se devagar e encontrou a porta azul aberta, com as chaves balançando pelo lado de dentro.


Esse conto me veio à cabeça enquanto eu via esse filme esquisitinho e legal